segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Perguntas de criança...

Rubem Alves

Há muita sabedoria pedagógica nos ditos populares. Como naquele que diz: “É fácil levar a égua até o meio do ribeirão. O difícil é convencer ela a beber a água...” De fato: se a égua não estiver com sede ela não beberá água por mais que o seu dono a surre... Mas, se estiver com sede, ela, por vontade própria, tomará a iniciativa de ir até o ribeirão. Aplicado à educação: “É fácil obrigar o aluno a ir à escola. O difícil é convencê-lo a aprender aquilo que ele não quer aprender...”

Às vezes eu penso que o que as escolas fazem com as crianças é tentar força-las a beber a água que elas não querem beber. Brunno Bettelheim, um dos maiores educadores do século passado, dizia que na escola os professores tentaram ensinar-lhe coisas que eles queriam ensinar mas que ele não queria aprender. Não aprendeu e, ainda por cima, ficou com raiva. Que as crianças querem aprender, disso não tenho a menor dúvida. Vocês devem ser lembrar do que escrevi, corrigindo a afirmação com que Aristóteles começa a sua “Metafísica”: “Todos os homens, enquanto crianças, têm, por natureza, desejo de conhecer...”

Mas, o que é que as crianças querem aprender? Pois, faz uns dias, recebi de uma professora, Edith Chacon Theodoro, uma carta digna de uma educadora e, anexada a ela, uma lista de perguntas que seus alunos haviam feito, espontaneamente. “Por que o mundo gira em torno dele e do sol? Por que a vida é justa com poucos e tão injusta com muitos? Por que o céu é azul? Quem foi que inventou o Português? Como foi que os homens e as mulheres chegaram a descobrir as letras e as sílabas? Como a explosão do Big Bang foi originada? Será que existe inferno? Como pode ter alguém que não goste de planta? Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Um cego sabe o que é uma cor? Se na Arca de Noé havia muitos animais selvagens, por que um não comeu o outro? Para onde vou depois de morrer? Por que eu adoro música e instrumentos musicais se ninguém na minha família toca nada? Por que sou nervoso? Por que há vento? Por que as pessoas boas morrem mais cedo? Por que a chuva cai em gotas e não tudo de uma vez?”

José Pacheco é um educador português. Ele é o diretor ( embora não aceite ser chamado de diretor, por razões que um dia vou explicar...) da Escola da Ponte, localizada na pequena cidade de Vila das Aves, ao norte de Portugal. É uma das escolas mais inteligentes que já visitei. Ela é inteligente porque leva muito mais a sério as perguntas que as crianças fazem do que as respostas que os programas querem fazê-las aprender. Pois ele me contou que, em tempos idos, quando ainda trabalhava numa outra escola, provocou os alunos a que escrevessem numa folha de papel as perguntas que provocavam a sua curiosidade e ficavam rolando dentro das suas cabeças, sem resposta. O resultado foi parecido com o que transcrevi acima. Entusiasmado com a inteligência das crianças – pois é nas perguntas que a inteligência se revela – resolveu fazer experiência parecida com os professores. Pediu-lhes que colocassem numa folha da papel as perguntas que gostariam de fazer. O resultado foi surpreendente: os professores só fizeram perguntas relativas aos conteúdos dos seus programas. Os professores de geografia fizeram perguntas sobre acidentes geográficos, os professores de português fizeram perguntas sobre gramática, os professores de história fizeram perguntas sobre fatos históricos, os professores de matemática propuseram problemas de matemática a serem resolvidos, e assim por diante.

O filósofo Ludwig Wittgenstein afirmou: “os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo”. Minha versão popular: “as perguntas que fazemos revelam o ribeirão onde quero beber...” Leia de novo e vagarosamente as perguntas feitas pelos alunos. Você verá que elas revelam uma sede imensa de conhecimento! Os mundos das crianças são imensos! Sua sede não se mata bebendo a água de um mesmo ribeirão! Querem águas de rios, de lagos, de lagoas, de fontes, de minas, de chuva, de poças dágua... Já as perguntas dos professores revelam ( Perdão pela palavra que vou usar! É só uma metáfora, para fazer ligação com o ditado popular! ) éguas que perderam a curiosidade, felizes com as águas do ribeirão conhecido... Ribeirões diferentes as assustam, por medo de se afogarem... Perguntas falsas: os professores sabiam as respostas... Assim, elas nada revelavam do espanto que se tem quando se olha para o mundo com atenção. Eram apenas a repetição da mesma trilha batida que leva ao mesmo ribeirão...

Eu sempre me preocupei muito com aquilo que as escolas fazem com as crianças. Agora estou me preocupando com aquilo que as escolas fazem com os professores. Os professores que fizeram as perguntas já foram crianças; quando crianças, suas perguntas eram outras, seu mundo era outro...Foi a instituição “escola” que lhes ensinou a maneira certa de beber água: cada um no seu ribeirão... Mas as instituições são criações humanas. Podem ser mudadas. E, se forem mudadas, os professores aprenderão o prazer de beber de águas de outros ribeirões e voltarão a fazer as perguntas que faziam quando eram crianças.


A complicada arte de ver

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão - era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

O texto acima foi extraído da seção "Sinapse", jornal "Folha de S.Paulo", versão on line, publicado em 26/10/2004.
Sobre rosas, formigas, tamanduás...
Rubem Alves


Sobre rosas, formigas e tamanduás

O seu nome era Brasilino Jardim. Brasilino Jardim tinha jardim no nome e jardim no coração. Ele amava todas as coisas vivas, de plantas a urubus. A vida, para ele, era sagrada.

Brasilino Jardim não ia à igreja. As pessoas religiosas temiam por sua alma e se perguntavam: "Ele não sabe que é preciso ir à igreja para estar bem com Deus? Quem não está bem com Deus corre perigo! Deus castiga!"

Brasilino sorria um sorriso manso e perguntava: "Onde está dito, nas Sagradas Escrituras, que Deus fez uma igreja? Todo Poderoso, se quisesse igrejas teria feito igrejas. Todo Poderoso, ele fez o que queria. E o que é que ele fez? Plantou um jardim. E está dito que ele 'andava pelo jardim ao vento fresco da tarde!' Quando estou no jardim sei que estou andando no lugar que Deus ama. Deus ama a vida, o vento, o sol, a terra, a água — coisas que estão no jardim. Mas as igrejas são lugares fechados, abafados. Bichos e plantas não se sentem felizes lá dentro..."

Não freqüentava igrejas mas amava um santo: São Francisco. Porque São Francisco foi o homem que via Deus nas coisas da natureza. São Francisco amava tudo o que vivia e, segundo a lenda, as coisas que viviam o entendiam, tanto que ele pregava sermões aos peixes e aos pássaros. Freqüentemente os animais ouvem melhor que os seres humanos...

Foi então que o Brasilino Jardim resolveu plantar um jardim em homenagem a São Francisco. Teria de ser um lindo jardim, com um canteiro de rosas no meio. E assim foi. Vendo as folhas viçosas das roseiras, a primeira rosa que se abrira e os botões que se abririam no dia seguinte, Brasilino foi dormir contente.

Ao acordar pensou logo no jardim. Queria ver se os botões já estavam abertos. Mas, decepção! O que ele encontrou foi devastação. Durante a noite as formigas saúvas haviam cortado todas as folhas e todas as flores das roseiras. Brasilino ficou muito triste. Resolveu aconselhar-se com um vizinho que tinha um lindo canteiro de rosas floridas.

"O jeito é matar as formigas", disse o vizinho. "Formigas e jardins não combinam. Para as formigas jardins são hortas, coisas para serem comidas."

"Matar as formigas? De jeito nenhum. São criaturas de Deus, como todos nós. Se foi Deus quem as fez, elas têm o direito de viver. Formigas têm direitos..." E com essas palavras deixou o vizinho falando sozinho. "Onde já se viu matar as formigas? São criaturas de Deus. Tem de haver outro jeito..."

Pensou: "Se as formigas comeram as roseiras, comeram porque estavam com fome. Não foi por maldade. Se eu der comida às formigas elas deixarão de ter fome e não comerão as rosas".

Dito isso plantou, à volta do jardim de rosas, um anel de cenouras tenras e doces que seriam o deleite alimentar das formigas. Mas as formigas ignoraram as cenouras. Continuaram a comer as roseiras.

"Talvez elas não tenham entendido", ele pensou. "Não perceberam nem que as cenouras são deliciosas e nem que são para elas. Ainda não foram educadas. Se forem educadas para gostos mais refinados não comerão as rosas. Serei um educador de formigas."

E como sabia que a noite é o tempo preferido pelas formigas para cortar roseiras, Brasilino passou a dar aulas às formigas durante a noite, peripatéticamente, no seu jardim. Queria que as formigas aprendessem a gostar gastronomicamente de cenouras e plasticamente de rosas.

O vizinho ficou incomodado com aquele falatório noturno. Foi ver do que se tratava. E se espantou. "Brasilino, você endoidou? Pregando às formigas?" Brasilino respondeu: "São Francisco pregou aos pássaros e aos peixes. E eles entenderam. Pois eu vou pregar às formigas e elas haverão de entender." Mas as formigas não ligavam para a aula do Brasilino. Não aprenderam a lição nova. Formiga continua a ser formiga. Continuaram a cortar as roseiras.

Diante do fracasso da pedagogia, Brasilino se lembrou de um recurso inventado pelos humanos chamado "condomínio". O que é um condomínio? São casas cercadas de muros de todos os lados, com o objetivo de impedir a entrada dos criminosos, que ficam do lado de fora. "Farei o mesmo com as minhas roseiras", ele disse triunfante. Ato contínuo tomou garrafas de coca litro, cortou bicos e fundos, fez um corte vertical ao lado e usou esses cilindros ocos como cintas protetoras para os caules das roseiras. "Agora minhas roseiras estão protegidas! As formigas não entrarão!" Pobre Brasilino! Ele não conhecia a esperteza das formigas. Elas sabem fazer túneis, escalar muralhas, passar por frestas, fazer pontes. E quando ele foi ao jardim, pela manhã, viu que as formigas haviam devorado de novo suas roseiras.

Lembrou-se então Brasilino de uma velha estória que relata o feito de um flautista que livrou uma cidade de uma praga de ratos que a infestava. O que foi que o flautista fez? Simplesmente tocou sua flauta! "Ah! A música tem poderes mágicos! Claro, as formigas não entendem a linguagem pedagógica dos argumentos. Haverão de ser sensíveis à magia da música." Comprou uma flauta e pôs-se a tocar o Bolero de Ravel. As formigas reagiram imediatamente. Sentiram o poder da música. Até os bichos têm música na alma. Começaram a mastigar folhas e rosas ao ritmo da música encantadora.

Com o fracasso da música, veio-lhe, então, uma nova idéia: "Se as formigas não podem ser nem conscientizadas pela palavra e nem sensibilizadas pela música, as rosas podem ser. Assim, vou despertar nas minhas rosas o sentimento da não-violência, da beleza da paz. O pensamento tem poder. Se todas as rosas fizerem juntas uma corrente de pensamentos de paz a energia positiva no ar será tão forte que as formigas se converterão..."

Espalhou, pelo jardim, imagens coloridas de paz. Flores sorridentes. Pôs CDs com música sobre rosas, Strauss, Vandré e Caymmi. Tudo, no espaço do jardim, sugeria paz e não violência. Quem visitasse o seu jardim sentia a energia positiva no ar. Mas parece que as formigas não eram sensíveis à energia positiva de paz. Continuaram a cortar as rosas.

Aí ele começou a ter raiva das rosas. "Não compreendo a passividade das rosas! Elas não se defendem! Tinham de se defender! Pois Deus não dotou as criaturas com o direito de defender a sua vida?"

Cobriu então os galhos das roseiras com espinhos pontudos e afiados, facas e espadas que as rosas deveriam usar para se defender das formigas. Mas as rosas não sabiam se defender. Não sabiam usar armas. Eram mansas e desajeitadas por natureza. As formigas continuaram a subir pelos seus galhos sem ligar para os espinhos.

No desespero, Brasilino resolveu tomar uma atitude mais radical, que mesmo contrariava seu sentimento de reverência pela vida: foi para o jardim munido de um martelo e pôs-se a martelar as formigas que se aproximavam das suas roseiras. Mas o número das formigas era imenso. Não paravam de chegar. Matou muitas formigas a marteladas, o que não as perturbou. E havia também o fato de que Brasilino não podia ficar martelando formigas o tempo todo. Precisava dormir. Dormindo, o martelo descansava. E as formigas trabalhavam.

"Já sei!", ele disse. "Apelarei para o Papa. O Papa tem reza forte. Pedirei que ele ore para que as formigas parem de comer minhas rosas" . Escreveu então uma carta para o Papa, expondo o seu sofrimento, e pedindo que ele intercedesse junto aos santos, junto à virgem, junto a Deus... Afinal de contas, as hostes celestiais deviam ter um interesse especial na preservação do jardim, aperitivo do Paraíso.

As autoridades eclesiásticas, de posse da carta de Brasilino, deram a ela a maior consideração, e a colocaram na lista da orações pela paz que o Papa rezava diariamente: paz entre judeus e palestinos, paz entre russos e chechênios, paz entre protestantes e católicos, paz na Espanha, paz na Colômbia, paz no Peru, paz na África... Era uma lista enorme. O Papa orou mas nada mudou. Os homens continuaram a se matar e as formigas continuaram a cortar suas roseiras.

De repente ele ouviu uma voz que o chamava. Era a voz do seu vizinho, que contemplava tudo em silêncio. "Eu tenho uma solução para o seu problema com as formigas, sem que você tenha de matar as formigas."

Brasilino se espantou: "Como?"

O vizinho explicou: "Você acha que as formigas são criaturas de Deus. Sendo criaturas de Deus têm direito a viver. Você está em boa companhia espiritual. Homens como São Francisco, Gandhi e Schweitzer também sentiam reverência pela vida." Brasilino ficou feliz ao se ver colocado ao lado desses santos.

Seu vizinho continuou: "Mas isso que você diz para as formigas deve valer para todas as criaturas. Certo?" "Certo", concordou Brasilino.

"Então, por que você não traz um tamanduá para morar no seu jardim? Tamanduás também são criaturas de Deus. E adoram comer formigas! Para isso têm uma língua fina e comprida, que entra até o fundo dos formigueiros! Para o tamanduá, comer formiga não é pecado; é virtude!"

E foi assim que o Brasilino, sem desrespeitar suas convicções espirituais, trouxe um tamanduá para viver no seu jardim.

E o tamanduá engordou, as formigas sumiram, o jardim floresceu e o Brasilino sorriu...

Moral da estória: Quem quiser se livrar das formigas e manter uma consciência tranqüila, que compre um tamanduá...


O texto acima foi extraído do jornal "Correio Popular — Revista Metrópolis", de Campinas (SP), onde o escritor mantém coluna bissemanal.

Fonte: http://www.releituras.com/rubemalves_menu.asp

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